Ivan, o espião

Ivan tem a mania de espiar pessoas. Não gosta de escutar conversa, pois acha falta de educação, porém, não resiste a dedicar minutos de observação à ação alheia. Não lembra de quando começou com isso, mas sabe que o faz desde criança; só que também acha que toda criança faz isso, e, portanto, não se satisfaz. Pergunta-se, às vezes, quando passou a ser sistemático, quando percebeu que tinha o costume, e, mais importante, quando tomou gosto pela coisa. Tímido e jovem, trabalha em uma biblioteca, onde não cultiva amigos nem qualquer outra relações. Todos os dias dona Augusta, a copeira, lhe oferece café, com um largo sorriso. Ele agradece sem olhar, desconfiado de que aquela senhora quer apenas dobrá-lo para manter a fama de "miss simpatia" que já lhe rendeu perfis nos dois jornais da cidade. Ivan acha estranho alguém ser tão simpático sem pedir nada em troca. Estranho, mas não ruim.

À Saramago, cria personagens com os frequentadores da biblioteca. "A Moça do Brinco de Pérola", "O Homem Calvo", "A Menina Doida"... Naquele ambiente com tantos, Ivan só gostava dos seus. A Moça do Brinco de Pérola devia ser virginiana, ele julgava pela regularidade. Todas as terças-feiras ela devolvia dois livros, o grande em cima do pequeno, e levava outros dois, um grande e um pequeno. Ah! Todas as terças, entre às 8h25 e 8h30. O Homem Calvo lhe era peculiar por apenas um motivo: não conseguia destacar nada nele que não fosse uma calvície discreta e comum. Assim, ficou O Homem Calvo. A Menina Doida o irritava, ao contrário d'A Moça do Brinco de Pérola, que lhe causava curiosidade, para não dizer que ela despertava-lhe algo mais forte. A Doida - como chamava quando estava irritado - falava alto, andava rápido, levava mais livros do que podia ler, conversava com todos e comentava com a senhora do balcão coisas que ele julgava segredos, confidências. Ficava irritado quando ela aparecia próximo da hora de fechar, porque sempre ficava mais do que vinte minutos, apesar de prometer que apenas devolveria o livro. E A Menina Doida não tinha hora para aparecer.

Um dia, no entanto, uma quarta chuvosa, enquanto arrumava a prateleira da Agatha Christie, percebeu A Menina Doida do outro lado, de costas para ele, uns seis metros a frente, escolhendo filmes. Ele a via pelo espaço entre os livros e prateleira superior. Ela estava levemente curvada, com o braço esquerdo estendido sobre a cabeça, como se segurasse a estante. Com a mão direita apontava para os filmes, lendo rapidamente seus nomes, talvez esperando que algum lhe pulasse à mão. Assim que chegou na extremidade, subiu o olhar para a parte de cima, onde encontrava-se a mão esquerda. Agora estava reta e o cotovelo dobrara-se; a mão escorregou pelo filme no qual já estava encostada, revelando cada letra do título de duas palavras vagarosamente, como se sentisse algum prazer a cada uma.

Naquele momento Ivan sentiu-se mal por não gostar d'A Menina Doida. Mesmo que tentasse, não tinha como não assumir: aquela era a cena mais bonita de sua vida. O ridículo saco voador de "Beleza Americana" murcharia e ficaria estático no pior dos vendavais se tivesse racionalidade para se comparar ao que tinha acabado de acontecer. A Menina - e ficou surpreso por ser a primeira vez que a chamava assim - pegou aquele mesmo filme, virou-se e foi ao balcão, sem percebê-lo. Ivan foi à cozinha e perguntou para dona Augusta: "A senhora sabe o nome daquela menina?"

3 comentários:

  1. nossa, lembrei de várias coisas lendo isso daki. espero que meu comentário não fique parecendo filosofia barata cheia de citação (?)
    "se você só observa, deixa de participar" - essa fala tem no livro que eu gosto bastante, mas por outro lado, observar faz parte de 'ficar do lado de fora da Matrix', acho que o melhor é o equilíbrio mesmo ^^
    ainda mais se tiver no meio uma moça do brinco de pérola protagonizada pela Scarlett Johansson
    (cagando a seriedade do comentário)

    Beijo! :*

    ResponderExcluir
  2. Eu lembrei de uma coisa específica lendo isso. Kori gostei do teu comentário. Eu imaginei a Scarlett Johansson tbm. (Adorooooo). A Doida me lembrou uma menina que trabalhava na copiadora de algum filme que eu não lembro o nome.

    ResponderExcluir
  3. Talvez o Saramago também não saiba nomear seus personagens.

    Esse ficou lindo.

    Beijo

    ResponderExcluir