Não pensou nas consequências quando botou no bolso, no mais largo da calça, um exemplar de Incidente em Antares, que há anos deveria ter lido. Lembrou-se de que algum tempo atrás começara as primeiras páginas, numa condenável indelicadeza: Era natal e decidiu dar o livro para uma amiga, mas na hora de embrulhá-lo se entregou à leitura. Ficou absorto e só fechou pra lá da página trinta. Sentiu-se culpado, mas leu mais algumas. A festa, no entanto, chegou, e o máximo que pôde fazer foi dizer: - Lê rápido que eu quero emprestado.
Depois de perder o contato com a presenteada não lembrou mais do assunto, exceto quando alguém falava em Erico Verissimo e ele anotava mentalmente de que tinha de procurar um exemplar do romance. Mas, como se sabe, notas mentais não são de confiança.
Certo dia acordou mais agitado que o normal, com vontade de, pelo menos no discurso, fazer tudo diferente. Não realizou a intenção logo na primeira etapa da rotina, quando fez o desjejum (comeu, como fazia há anos, um pão com linguiça ou salame, seguindo de metade de outro com algo doce), mas, em sua imaginação, mantinha firme o objetivo. Seguiu à biblioteca da faculdade, onde ficava as primeiras horas da manhã, e lá teve um ímpeto, no mínimo, contraventor.
Um exemplar de Incidente em Antares, de bolso, reimpresso em 2006, descansava sobre a mesa 3 do espaço reservado à leitura da biblioteca (sim, cada vez mais eventos das mais distintas origem realizavam-se no espaço da faculdade que, cada vez mais, trocava sua vocação por práticas administrativas avançadas, baseadas nas mais conceituadas teorias marqueteiras). "Oras, quem nunca roubou um livro na vida?", questionou-se em pensamento. "Só que não sabe ou não quer ler", respondeu justificando-se.
Abriu a Folha de S. Paulo sobre a mesa três e, na confusão de movimentos propositalmente engendrada, deslizou o volume sobre seu colo, enfiando-lhe no bolso largo em seguida.
Por fora dava de ombros, numa atitude que julgava ser a apropriada para a nova fase, sem culpa, medo ou hesitação, afinal era um novo ser. Por dentro era puro nervosismo. Como já foi dito, não pensou nas consequências, mas o ato já lhe servia para motivar o medo. Decidiu sair dali, crente que se superasse aquele momento sem dar pra trás estaria realmente nascendo de novo. Ergueu-se normalmente, mas o primeiro passo foi trêmulo, vítima da pressão causada por aquele peso que queria sair, mas que não estava com ele quando entrou.
Passou pelo balcão ignorando, de nervoso e compenetrado, o "ciao" da simpática Paola, a guardiã do conhecimento no período matutino. Avistou um ônibus que saia quase vazio (seria um milagre?) do ponto universitário e correu até ele. Sentou no segundo banco, aliviado como um fugitivo que alcançou a fronteira.
Abriu o livro à procura da última lembrança, para ver se a história ainda fazia sentido. Teve de recomeçar. Quando acabou, dois dias depois, arrepiado com a última frase, decidiu devolvê-lo à biblioteca.
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